Uma boa liderança em tecnologia tem por objetivos:
- Inspirar e criar condições técnicas para a inovação
- Fomentar uma cultura colaborativa entre equipes
- Manter os funcionários motivados (seja em funções mais técnicas, mais básicas ou mais de gestão)
- Instalar as plataformas para potencializar a atuação da empresa
Líderes muito centralizadores, que buscam estar envolvidos em cada decisão, acabam por afetar direta e negativamente o funcionamento de seus times e a empresa como um todo.
O ideal é que a engenharia de uma companhia de tecnologia funcione quase como um algoritmo, sem motivo para comentários do tipo: “Aquela pessoa só foi promovida porque se reporta para o gestor A ou gestor B”. Para isso, a liderança, junto ao setor de recursos humanos, precisa estabelecer processos que sejam consistentes na empresa inteira e que funcionem de maneira transparente e sistemática.
Com a definição de processos como avaliação de desempenho, span of control, gestão de orçamento, determinação de horizontes de curto, médio e longo prazo, caso haja uma troca de CTO, nada muda, porque existem sistemas instalados e conhecidos..
Um líder de tecnologia sempre tem muito com o que se preocupar no dia a dia, porém precisa, ao mesmo tempo, estar pensando em como “programar” a organização. É como se estivesse escrevendo um programa de computador para automatizar o trabalho do CTO, com soluções pré-programadas para boa parte dos comportamentos e situações. Enquanto faz a gestão, recebe insumos para ir refinando esse grande programa.
Assim, a cada problema ou situação nova que encontra, há informação para alteração ou refinamento de alguma regra, e a organização tende a funcionar cada vez melhor – e sem criar impressão de favoritismo ou de mudanças aleatórias.
Normas para automatizar comportamentos
Uma outra forma de olhar para a premissa da gestão sistemática é comparando com o controle de tráfego nas ruas: as regras são tão bem definidas que quem dirige as internaliza e apenas observa os sinais, sem necessitar de lembretes constantes explicando, por exemplo, que não se pode ultrapassar outros carros quando há uma linha contínua pintada no chão.
No melhor dos mundos, uma companhia funciona com esses “mecanismos” (nome usado na Amazon, como explicado no livro Obsessão pelo cliente, Citadel, 2023) predefinidos de forma a facilitar que sejam seguidos. Uma determinação como “ninguém dentro da empresa pode deixar de usar repositórios compartilhados” pode estar expressa de forma falada ou escrita, em protocolos, ou pode ser automatizada em uma ferramenta, de maneira que mesmo que se tente não seja possível contrariá-la.
É como uma lei que estabelece que um automóvel só pode andar a no máximo 10 km/h perto de uma escola. Como a simples lei é um protocolo fácil de ser descumprido, pode-se criar uma solução mecânica, como a implantação de um quebra-molas, ou mais automatizada, como um radar eletrônico, para que haja mais certeza do “respeito” à norma.
Com a evolução da tecnologia, e considerando carros conectados e autônomos, o próprio veículo poderá em algum momento, pela localização, reduzir a velocidade, sem que o usuário tenha a chance de burlar a diretriz. A diretiva é colocada em um mecanismo que a automatiza.
Em uma empresa, esse é um processo em constante evolução, e a supervisão humana dá conta de adaptá-lo às mudanças no mundo e impedir que a automatização passe por cima das peculiaridades que fazem parte e enriquecem as interações sociais.
O líder de tecnologia precisa equilibrar então sua atuação entre o desenvolvimento de times, o aperfeiçoamento de ferramentas e plataformas e o ajuste da estrutura das equipes com medidas concretas como:
- Reuniões 1:1 de mentoria
- Entrevistas de candidatos em diferentes níveis hierárquicos
- Participação nas decisões sobre os horizontes de trabalho a curto, médio e longo prazo da equipe de engenharia
- Escolha de interferência mais próxima em projetos com potencial multiplicador — entre um projeto que vai impactar mil desenvolvedores e outro que vai envolver dez, é preferível atuar mais de perto junto ao que afetará mais gente
Satisfação da equipe: ciclo virtuoso no ambiente de trabalho
Não é comum, mas há situações em que se pode trabalhar em um ambiente com funcionários bem recompensados, utilizando as melhores plataformas e erguendo um projeto baseado na excelência. Isso aconteceu no Google na primeira década do século 21: as pessoas trabalhavam com satisfação, ao mesmo tempo em que proporcionavam um impacto positivo gigante para a empresa.
Uma boa liderança trabalha para criar esse tipo de ambiente em que cada colaborador acredite estar no melhor emprego possível, atendendo a clientes satisfeitos que optam pela empresa pela eficiência e pelo custo acessível dos serviços.
Como não há como obrigar ninguém a amar seu próprio emprego, o que a boa liderança pode fazer é trabalhar ativamente para que isso aconteça. Um CTO não tem controle direto sobre o humor dos acionistas, nem possui uma alavanca para controlar o valor da ação ou a quantidade de clientes que a empresa conquista. O que deve controlar é a contratação das pessoas certas, a redução dos débitos técnicos, a organização do time, o modo de lidar com os incidentes, assim como todos os fatores que contribuem para melhores serviços e produtos.
Cabe a um líder sentir o pulso das pessoas no dia a dia, o nível de satisfação e produtividade da equipe, e saber onde atuar para suprir falhas. O ambiente de trabalho pode ser excelente, mas as ferramentas de desenvolvimento, terríveis; pode ser que as plataformas sejam ótimas, mas as pessoas não sejam bem recompensadas, o que resulta em um alto índice de turnover, e nesse caso é preciso reorganizar o sistema de remuneração. Pode ser que a cultura não seja colaborativa, então é nela que o líder precisa se focar. Pode ser que as plataformas não estejam construídas, e esse seja o principal ponto de atenção.
Em um círculo virtuoso, há menor rotatividade de pessoal e o time de tecnologia trabalha de forma mais eficiente, o que permite que ele se pague e que seja mais enxuto, com um span of control estruturado. Todos têm sua contribuição bem definida, entregando as plataformas com a escala de que a empresa necessita, operando a baixo custo. Chega-se então a um ponto ótimo, em que o melhor para os indivíduos e para a empresa não são dois componentes conflitantes, e sim sinergéticos.
Montando um framework sistemático de liderança em tecnologia
Fazer um modelo sistemático siginifica resolver um problema de forma genérica e reprodutível, o que é mais profundo – e eficaz – do que simplesmente resolver o problema.
A tecnologia intencional pretende estabelecer um framework de liderança sistemático, com direcionamentos sobre como organizar o time, a estrutura, as plataformas, os mecanismos de comunicação e até os erros.
Ter uma ideia de negócio e construir um sistema para concretizá-la está cada vez mais factível. Quase qualquer pessoa consegue construir um protótipo, mesmo sem ter grande formação técnica.
A questão é que, sem estrutura e pensamento intencional de tecnologia, esse protótipo não vai virar um negócio com escala. Ele tem de ser ampliado com processos de engenharia, com padrões arquiteturais, usando as ferramentas mais adequadas e as plataformas corretas. Invariavelmente, protótipos feitos por fundadores de empresas precisam ser repensados em algum momento. E é aí que entra a importância de uma liderança técnica mais sólida.
É ela que vai questionar:
- Estão sendo atendidos todos os requisitos de segurança?
- Se os usuários crescerem 10x, ou 100x, o sistema tem capacidade de atendê-los?
- Há mecanismos de combate a fraude?
- As regulamentações técnicas e jurídicas do país estão sendo atendidas?
A função de líderes experientes é encapsular esses padrões e direcionamentos em ferramentas e plataformas e em cultura corporativa, para que o conhecimento seja transmitido e reutilizado automaticamente, concretizando assim o efeito multiplicador.

Marcus Fontoura
Marcus Fontoura é atualmente technical fellow na Microsoft e CTO do Azure Core. Iniciou a carreira na área de pesquisa da IBM em 2000, depois de concluir o doutorado na PUC-Rio e o pós-doutorado na Universidade de Princeton, nos Estados Unidos. Teve passagens pelo Yahoo! e pelo Google, e promoveu uma transformação digital na fintech brasileira StoneCo, onde atuou como CTO. É autor do livro Tecnologia Intencional e publisher da plataforma com o mesmo nome.