O líder de tecnologia não é necessariamente aquela pessoa perspicaz que inventa um aplicativo novo e sabe de todas as novidades tech do mercado. Para comandar uma equipe de tecnologia é preciso ser alguém capaz de conversar com colegas de todas as áreas da empresa para entender como transformar a tecnologia em parte inseparável da função de cada uma delas. Muita gente acha que isso se traduz em criar sistemas para automatizar processos manuais. Não é isso.
Automatizar e digitalizar processos manuais é como perder tempo pensando em como fazer uma carroça mais rápida, em vez de se concentrar em construir um carro.
A tecnologia tem que mudar o jogo, não apenas acelerá-lo. Se cada departamento da companhia contratar alguns profissionais de tecnologia para, separadamente, criar dez sistemas, grandes são as chances de se acabar com dez problemas no final. Cada um desses departamentos pode ser localmente melhor do que era, porém globalmente a empresa estará em uma situação muito aquém do potencial, pela falta de comunicação e integração.
O caso da distribuição das primeiras doses de vacinas de Covid-19 nos Estados Unidos durante a pandemia exemplifica como a falta de um sistema central de tecnologia pode prejudicar a execução de projetos. O governo dos EUA optou por organizar a imunização distribuindo lotes de vacinas para que as redes de farmácias do país gerenciassem a administração delas.
Essas grandes redes privadas repartiam então as remessas recebidas entre suas filiais. Porém, houve equivocos na forma e no volume de distribuição, e, além disso, a população precisava ir ao site de cada rede de farmácia para realizar uma busca e localizar em que região próxima à sua casa ou trabalho conseguiria agendar a vacinação.
Se tivesse sido criado um sistema único de distribuição e informação, como muitos estados e municípios do Brasil fizeram, o serviço teria sido muito mais simples e conveniente para o usuário, além de mais efetivo quanto ao objetivo de vacinar o maior número de pessoas possível, no menor intervalo de tempo. Um sistema central único teria poupado o governo dos EUA de bastante confusão com o esquema vacinal da população. Um detalhe desses faz muita diferença na quantidade de vacinas aplicadas e na racionalização do processo todo.
Como a dimensão da pandemia de Covid-19 foi um fato sem equivalentes na história recente, ninguém havia planejado um protocolo de vacinas nos EUA, onde não há um sistema de saúde pública amplo como o SUS, que pudesse ser rapidamente escalável e implementável. O processo não foi pensado para que a tecnologia ocupasse uma parte essencial do que estava sendo feito, e é exatamente nesse tipo de situação que a falta de visão de um líder de tecnologia impacta os resultados desejados.
A tecnologia não pode ser um acessório de projetos, ela tem que ser um veículo.
De nada adianta desenvolver um serviço ou produto para só depois pensar em como a tecnologia vai se encaixar naquilo. Com uma liderança de tecnologia envolvida desde o começo, as possibilidades de execução são analisadas de um jeito diferente. Não se trata de melhorar um processo originalmente analógico, mas sim de transformá-lo.
Resistência à transformação tecnológica
Há situações em que a resistência da empresa como um todo para a implementação desse modelo de liderança de tecnologia é tão grande que, mesmo diante de um gestor bem intencionado e informado, a transformação digital emperra.
Muitas vezes não existe espaço na companhia para um líder de tecnologia conduzir um projeto ambicioso, porque ninguém ali entende direito o papel da tecnologia no negócio. “Todos os sistemas que aquele time faz não funcionam” é uma percepção bem comum nos corredores e nas conversas de chat de empresas. A isso somam-se, então, as inevitáveis perguntas:
- “Por que a gente precisa disso?”
- “Por que os chatos da tecnologia implicam com coisas que funcionam?”
- “Por que o time de tecnologia custa tão caro?”
- “Quando é que esse sistema que disseram que ficaria melhor vai parar de dar bugs?”
Para implementar o pensamento intencional de tecnologia, um líder de tecnologia tem que estar disposto a paralelamente conduzir também uma transformação cultural na organização.

Marcus Fontoura
Marcus Fontoura é atualmente technical fellow na Microsoft e CTO do Azure Core. Iniciou a carreira na área de pesquisa da IBM em 2000, depois de concluir o doutorado na PUC-Rio e o pós-doutorado na Universidade de Princeton, nos Estados Unidos. Teve passagens pelo Yahoo! e pelo Google, e promoveu uma transformação digital na fintech brasileira StoneCo, onde atuou como CTO. É autor do livro Tecnologia Intencional e publisher da plataforma com o mesmo nome.