É natural que se associe a ideia de uma empresa de tecnologia a gigantes como Google, Meta, Apple e Microsoft ou ainda a enormes empreendimentos de inovação científica como a Nasa ou consórcios de biotecnologia responsáveis pelo rápido desenvolvimento das vacinas de Covid-19 durante a pandemia. Para além dessas, contudo, há no mundo, e no Brasil, inúmeras companhias e organizações que são geradoras e multiplicadoras de tecnologia, além de outras tantas em que a tecnologia permeia todos os aspectos de suas atividades.
Independentemente do ramo de atuação e até do tamanho que tenha, uma empresa de tecnologia incorpora a mentalidade de tecnologia a departamentos, operações, instalações e pessoal, de forma que todos passem a ser interligados e tenham suas operações facilitadas por processos tecnológicos e ferramentas de computação.
E aqui não se trata apenas de adotar processos digitais ou de automação. É acima de tudo uma questão de trabalhar em atividades do dia a dia, planejamento futuro e definição de prioridades para que a tecnologia faça a diferença na atuação hoje e amanhã – especialmente quando o crescimento da instituição cria a necessidade de escalar e diversificar seu produto ou serviço.
Uma empresa de tecnologia incorpora a mentalidade de tecnologia a departamentos, operações, instalações e pessoal, de forma que todos passem a ser interligados e tenham suas operações facilitadas por processos tecnológicos e ferramentas de computação.
Diferenças entre uma empresa de tecnologia e um departamento de tecnologia
O impulso da maioria das companhias públicas ou privadas é organizar uma área de TI (tecnologia da informação) que presta serviços para o resto da organização inteira. Em uma descrição caricata, funciona mais ou menos assim, nesse modelo: uma área tem uma solicitação de tecnologia e faz um pedido para o setor de TI. Esse pedido entra em uma fila de prioridades com outros pedidos e trabalhos do dia a dia que precisam ser realizados. Até pode haver um gestor de TI, mas em geral ele tem um time só para resolver todos os problemas, as compras de equipamento, as manutenções e as implementações de sistemas da empresa.
Principalmente no Brasil, as pessoas até hoje têm a percepção de que basta ter alguns funcionários para “fazer o trabalho de informática” que o assunto “tecnologia” está resolvido.
Em uma empresa que segue o modelo de tecnologia integrada ao negócio, no entanto, há um CTO ou líder de engenharia que está à frente de um time de desenvolvedores com funções de apoio para todos os departamentos da companhia, desde o marketing até os benefícios e as entregas. O gerente de RH sabe que tem um parceiro desenvolvedor na tecnologia totalmente dedicado ao RH e com quem vai trabalhar em soluções e ferramentas.
Há que se guardar as devidas proporções: um micro negócio de família pode não se enquadrar nessa categoria de “empresa de tecnologia” nem desejar chegar lá. Porém, se o empreendimento prosperar e expandir significativamente, passando para 30, depois 300 e até 1.000 pessoas, será inevitável considerar que, em algum momento, somente com tecnologia como parte integral do negócio conseguirá:
- Melhorar sua rede de entrega
- Receber e realizar pagamentos
- Manter bancos de dados de fornecedores e clientes atualizados
- Casar a folha de pagamentos com os dados dos funcionários
- Dar conta de receitas e despesas
Tecnologia no primeiro plano da empresa
Não são só pequenas empresas que a certa altura precisam reavaliar seu relacionamento com a tecnologia e superar a crença de que basta ter uma área de TI para resolver pepinos técnicos conforme apareçam.
Companhias de médio e grande porte, corporações e até governos podem correr uma série de riscos financeiros e reputacionais se seus softwares não operarem com a devida margem de segurança digital, se seus sistemas não forem projetados considerando dependências internas e externas e se suas ativações de marketing não anteciparem falhas. Quando muita gente acessa ao mesmo tempo uma página de distribuição gratuita de produto, por exemplo, ou o link de um cadastro obrigatório no último dia de prazo, o sistema cai, se não for bem projetado.
Um sistema mal projetado pode significar desde compras perdidas porque os cartões não passaram até a falta de acesso dos dados de um paciente no hospital, ou milhões em prejuízos se a pane for generalizada em uma plataforma bancária ou de varejo. A coordenação adequada da tecnologia de uma instituição pública ou privada, minúscula ou enorme, é vital no mundo em que vivemos.
É muito frequente que se perpetue nas organizações um processo desordenado de tecnologia, que tende a gerar grandes prejuízos ao longo do tempo, tanto econômicos como humanos e técnicos. É mais comum ainda ocorrer em empresas que cresceram rápido, usando para isso improviso técnico ou soluções pouco sustentáveis, construídas “em casa” ou através de aquisição de outras empresas.
Na tentativa de acelerar, cumprir prazos e lançar produtos e serviços, companhias em expansão se comportam como se estivessem disputando uma corrida, e precisassem de todos os recursos à mão para imprimir velocidade para ganhar da concorrência. Só que com isso não sobram esforços nem energia para planejar a longo prazo, e essa falta de pensamento estratégico frequentemente coloca sua sobrevivência em jogo.
Em um ambiente de tecnologia sem uma gestão específica e bem pensada, além de não haver espaço para a otimização dos procedimentos já existentes, é baixa a chance de surgirem ideias criativas e inovadoras que possam representar um verdadeiro salto competitivo para a instituição. Larry Page, fundador e ex-CEO da Google, costumava dizer que muitas vezes são necessárias mudanças radicais e não incrementais, portanto a gestão de tecnologia tem que dar espaço à inovação.
Para evitar ciclos que arriscam a própria existência do negócio, o ideal seria a empresa ter compreensão do seu momento e potencial de expansão para investir na gestão de tecnologia em uma fase ainda inicial – da mesma forma, por exemplo, como decide implantar a gestão de recursos humanos quando o número de funcionários ultrapassa certo limiar.
O mais comum, contudo, é as empresas adotarem a gestão de tecnologia quando já há um certo nível de desorganização na área, e muita coisa a consertar. De toda maneira, quanto antes a mentalidade de tecnologia estiver no centro das decisões de todos os setores, melhor.
Tecnologia intencional na prática
O primeiro passo é estruturar uma área única de tecnologia, com lideranças, cultura e processos bem definidos. Para que um time de tecnologia funcione bem, ele requer alguns equilíbrios entre:
- Profissionais mais experientes X menos experientes
- Profissionais com perfil mais técnico X perfil mais gestor
- Tempo dedicado ao arroz-com-feijão do dia a dia X tempo dedicado à inovação
- Cumprimento de prazos X espaço para criar
- Origens e maneiras de pensar diversificadas
Atingir esses equilíbrios não é tarefa simples, e cada organização tende a alcançar sua própria solução híbrida.
Independentemente do caminho entre o ideal e real que se venha a percorrer, é primordial investir em uma cultura de tecnologia que possa ser aceita e implementada dentro de todos os departamentos da companhia e contar com uma equipe apta a desenvolver soluções integradas para times variados, atuando em parceria com eles.
Uma vez que se incorpore isso, ninguém mais deve inventar um novo canal de vendas, ou executar uma remodelação de logística, ou adotar um sistema de avaliação de pessoas, sem envolver tecnologia. A tecnologia passa a fazer parte de todos esses processos, porque todos terão apoio da tecnologia – e não porque a equipe de tecnologia esteja buscando mandar em outras áreas da companhia.
Em empresas sem uma área de tecnologia adequadamente envolvida nos processos, é comum que sistemas sejam desenvolvidos ou comprados sem a participação das pessoas corretas e sem diretrizes claras. São decisões que geram problemas imensos no longo prazo, porque é mais difícil arrumar um sistema quando não se acompanhou a construção fase a fase.
É primordial investir em uma cultura de tecnologia que possa ser aceita e implementada dentro de todos os departamentos da companhia e contar com uma equipe apta a desenvolver soluções integradas para times variados, atuando em parceria com eles.
Com uma gestão de tecnologia apropriada, os processos de engenharia são executados da maneira certa desde o começo. Sistemas novos podem, por exemplo, ser validados aos poucos usando metodologias de desenvolvimento ágeis, a partir de MVPs (minimum viable product ou produto mínimo viável). Ganha-se tempo e produtividade.

Marcus Fontoura
Marcus Fontoura é atualmente technical fellow na Microsoft e CTO do Azure Core. Iniciou a carreira na área de pesquisa da IBM em 2000, depois de concluir o doutorado na PUC-Rio e o pós-doutorado na Universidade de Princeton, nos Estados Unidos. Teve passagens pelo Yahoo! e pelo Google, e promoveu uma transformação digital na fintech brasileira StoneCo, onde atuou como CTO. É autor do livro Tecnologia Intencional e publisher da plataforma com o mesmo nome.